¿Cuál es la televisión que los docentes quieren? De las experiencias ausentes a las emergencias de conocimientos con vídeos
y programas de televisión

Which tv do teachers want? From unrecognized experiences to emerging
knowledge of the selection of video and TV programs

 

Glaucia Guimarães
Nilda Alves
Raquel Goulart Barreto

(Brasil)

     
             
             
     

RESUMEN

     
     

Com base em indícios resgatados em documentos e observações, o objetivo deste trabalho é revelar sentidos emancipatórios existentes, mas invisíveis ou ignorados, em meio aos processos regulatórios, bem como compreender os saberes, as idéias que impregnam as práticas cotidianas desenvolvidas pelos sujeitos sociais.

No sentido de valorizar os conhecimentos e as práticas sociais marginais, fundamentamo-nos em Boaventura de Sousa Santos, que propõe a sociologia das ausências e a sociologia das emergências. Na primeira, o movimento é o de expandir o domínio das experiências sociais já disponíveis, contudo negligenciadas, enquanto na segunda é o de expandir o domínio das experiências sociais possíveis. Propõe uma arqueologia das experiências já existentes, mas invisíveis, no intuito de revelar as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis. Trata-se de revelar e difundir experiências vividas por pessoas comuns, de conhecer e propalar experiências construídas em trabalhos científicos marginalizados e de encontrar e anunciar conhecimentos/experiências nos mais diversos campos sociais, no movimento de constituição de alternativas à lógica hegemônica e, ao mesmo tempo, de manutenção de tradições marginalizadas e desperdiçadas pela ciência moderna. Por meio da sociologia das ausências, estas experiências são resgatadas e divulgadas para se tornarem possíveis encaminhamentos das questões enfrentadas, para se constituírem em outros sentidos para a transformação social ou, ainda, para propor novas formas de pensar.

Apresentamos uma reflexão sobre experiência no campo social de conhecimentos que, segundo Santos, trata de conflitos e diálogos possíveis entre diferentes formas de conhecimento. No caso deste trabalho, a tentativa é a de resgatar a experiência pedagógica no uso de vídeos de alguns dos professores da Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro, ignorada pelos próprios professores e por especialistas nas áreas de educação e comunicação, sendo os últimos produtores de vídeos educativos para auxiliar a prática pedagógica dos primeiros.

O exercício de ler indícios e pistas, muitas vezes insignificantes, mas reveladores, presentes nas falas e ações dos professores, indicou que, longe de ausência de saber, os modos peculiares de utilização de TV e vídeo revelam outros saberes e outra(s) lógica(s). O que pode sugerir ação isolada e desprovida de conhecimento, também pode ser compreendido como pista para uma prática e um saber criativo e emancipatório.

     
      ABSTRACT      
     

Based on hints gathered in documents and observations, the aim of this work is to reveal emancipatory meanings present, though invisible or not fully realized in regulatory processes, as well as to understand knowledge and ideas impregnated in the daily practices of social agents.

In order to valorize edge knowledge and social practices, this work is grounded on Boaventura de Sousa Santos, especially on his formulation of a two-fold Sociology: one related to the social experiences that have not been recognized yet as valuable and the second related to the expansion of possible social experiences. The movement corresponds to the construction of an archeology of already developed social experiences, though not visible or recognized by the existing theoretical frameworks, so as to reveal both kinds of experiences: the recognized ones and the possible ones. By means of experiences developed by ordinary people, the aim is to get to know and socialize experiences conducted in boundary scientific works in several social areas to make it possible to gather hints to the production of alternatives to hegemonic ideas and to the maintenance of traditions abandoned by modern sciences. Based on what can be called «Sociology of absences», experiences can be valued, publicized and used to convey hidden meanings, to exploit possible ways to deal with posed questions and to legitimate new forms of thinking.

Based on these assumptions, we present a reflection on an experience in the social field, regarding possible conflicts and dialogues between forms of knowledge. In this case, we treat the pedagogical experience with video and TV programs, developed by teachers and experts on education and communication in the official schools of Rio de JaneiroCity, being the latter put in charge of helping the former in their pedagogical practices.

By means of the hints gathered, sometimes taken as unimportant, it was possible to identify in the teachers´ speeches and actions, particular ways to work works with video and TV programs that, far from being characterized by lack of knowledge, were plenty of alternative logical thinking and could lead to the production of creative and emancipatory practices. In short, what could be seen as meaningless could also be regarded as emerging knowledge.

     
      DESCRIPTORES/KEYWORDS      
     

Experiência, conhecimento, emancipation.
Experience, knowledge, emancipation.

     
     

[A ciência moderna] propôs-se não apenas compreender o mundo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo [...] A ciência é feita no mundo, mas não é feita de mundo (Santos, 2004).

     
     

Este texto foi desenvolvido a partir de experiência vivenciada por Gláucia Guimarães, na condição de membro da equipe da Divisão de Mídia-Educação da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, participante de vários estudos que visavam a compreender e aperfeiçoar processos e procedimentos na Rede Municipal, em interlocução com a MultiRio (Empresa de Multimeios LTDA), concebida especialmente para colocar à disposição desta rede «programas inovadores com o uso das tecnologias de comunicação e de informática, criando uma cultura de utilização de multimeios no processo educativo» (MultiRio, 1996).

A reflexão ora apresentada foi construída em dois espaços do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ: uma disciplina do Curso de Doutorado, ministrada por Nilda Alves, e o grupo de pesquisa (UERJ-CNPq) em Educação e Comunicação, coordenado por Raquel Goulart Barreto. Seu principal objetivo foi resgatar a experiência pedagógica no uso de vídeos dos professores, muitas vezes ignorada por eles mesmos e pelos especialistas em educação e em comunicação que produzem vídeos educativos para auxiliar a prática pedagógica dos professores, na referida empresa de multimeios, da mesma prefeitura.

O contexto situacional em que a experiência esteve inscrita foi o do movimento, bastante difundido, de formular propostas (de cima) a serem implementadas pelos professores nas suas práticas pedagógicas, demarcando, mais uma vez, a distinção entre os que pensam e os que fazem a educação (Alves, 1992), acrescentando a esta interlocução assimétrica (Barreto, 2002a), especialistas em comunicação, especialmente no que tange à utilização da TV nas salas de aula (Guimarães, 2003).

A trajetória desta reflexão partiu da constatação de que o século XX foi especialmente rico para o desenvolvimento do conhecimento humano. Não foram poucos os desafios colocados à competência explicativa das teorias, premissas, pressupostos, hipóteses, metodologias e as leis fundadoras do pensamento moderno. A relatividade de Einstein, a microfísica, a microbiologia, a termodinâmica, a biotecnologia, a engenharia genética e a física quântica ampliaram e continuam ampliando o universo das nossas indagações e inquietações.

Com efeito, cada vez mais nos vemos confrontados com novas verdades e com incertezas sobre as formas de ver o real há muito estabelecidas, instituídas e legitimadas. E parece haver acordo de que são estas algumas das principais questões que nos impõem retomar a discussão sobre a ciência moderna e questionar seus paradigmas.

Entre os expoentes da discussão que se trava hoje sobre o assunto, estão: Boaventura de Sousa Santos, Carlo Ginzburg, Edgar Morin, Michel de Certeau, entre outros. Santos (2001) considera que as sociedades e culturas contemporâneas são intervalares; situam-se no trânsito entre o paradigma da modernidade, cuja falência tem sido considerada como cada vez mais visível, e um paradigma emergente, ainda difícil de explicar.

Ginzburg (1987, 1989) assinala o esgotamento do paradigma metodológico da modernidade ao considerar a impossibilidade de captar o real por meio de métodos que primam pela neutralidade científica. Assim, aponta para a necessidade de se trabalhar sobre os indícios e os sinais para apreender neles elementos de realidade não compreensíveis através de meios tradicionais da pesquisa. Ao questionar os métodos científicos modernos, explicita o desconforto causado por classificações racionalistas ou irracionalistas, tão polêmicas nas confrontações entre as ciências humanas e as chamadas ciências exatas.

Morin (2001), embora o considere ainda emergente, observa que o novo paradigma deve enfrentar a complexidade do real, o que significa confrontar-se com os paradoxos de ordem/desordem, singular/geral, parte/todo, o acaso e o particular como componentes da análise científica, resíduos não científicos para o paradigma clássico, sobretudo nas ciências humanas. A incerteza, a desordem, a contradição, a pluralidade e a complicação são características da complexidade humana, renegadas em função de revelar, na ciência clássica, a simplicidade oculta das leis imutáveis da natureza, sobretudo, da natureza humana.

Já Certeau (1994), considerando a complexidade humana, parte do mesmo princípio de Foucault em A microfísica do poder, mas, em vez da ordem social e a passividade dos consumidores, vê nas práticas cotidianas a criatividade e a astúcia das pessoas ordinárias.

Dentre estes autores, é Santos (2001) quem vai afirmar que esse paradigma emergente apresenta sinais que permitiriam a emancipação social, por meio de duas dimensões da transição: a epistemológica e a societal. Para ele, a transição epistemológica ocorre entre o paradigma de ciência moderna (conhecimento-regulação) e o paradigma emergente do conhecimento prudente para uma vida decente (conhecimento-emancipação). E a transição societal – somente vista em atenção aos saberes e ações negligenciadas, colocadas como particulares e marginais – ocorre entre o paradigma dominante (produção capitalista, lógica de mercado, desenvolvimento global, desigual e excludente) para um outro onde se recorre a uma tradição marginalizada de modernidade e de utopia a um senso comum esclarecido emancipatório (Santos, 1998, 2001).

Defendendo também um paradigma que pode ser apontado como emergente, Ginzburg apresenta, em Mitos, emblemas e sinais, a história do paradigma indiciário. Em «Sinais: raízes de um paradigma indiciário», um dos capítulos do livro, descreve método insólito criado pelo historiador de arte Giovanni Morelli, cuja proposta era a de distinguir as obras de arte originais das suas cópias falsas por meio do exame dos pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés (Ginzburg, 1989). Esta ousadia contrariou os métodos fundamentados cientificamente utilizados pelos museus de arte na atribuição das obras originais e falsas.

Ainda segundo Ginzburg (1989), a doutrina de Morelli, ao afirmar que a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos intenso, precedeu a teoria de Freud sobre o inconsciente revelado nos pequenos gestos, merecendo (o método e a teoria) a incredulidade da ciência moderna, afirmando-se que as conclusões eram pouco científicas e subjetivas, porque propunham um método interpretativo centrado sobre resíduos, sobre dados marginais, considerados reveladores, ou ainda pormenores considerados sem importância (id., ibid):

Esses dados marginais, para Morelli, eram reveladores porque constituíam os momentos em que o controle do artista, ligado à tradição cultural, distendia-se para dar lugar a traços puramente individuais, que lhe escapavam sem que ele se desse conta [...] pistas infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli).

É também tentando valorizar os dados, os conhecimentos e as práticas sociais marginais que Santos (2004) propõe a sociologia das ausências e a sociologia das emergências. Na primeira, o movimento é o de expandir o domínio das experiências sociais já disponíveis, contudo negligenciadas, e na segunda o movimento é o de expandir o domínio das experiências sociais possíveis. Em outras palavras, propõem uma arqueologia das existências invisíveis no intuito de revelar as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis no presente e no futuro. Trata-se de revelar e difundir experiências vividas por pessoas ordinárias (Certeau, 1994), de conhecer e propalar experiências construídas em trabalhos científicos marginalizados e de encontrar e anunciar conhecimentos/experiências nos mais diversos campos sociais, que podem vir a constituir alternativas à lógica hegemônica e que, ao mesmo tempo, vão instituindo tradições marginalizadas e desperdiçadas pela ciência moderna (Santos, 2001). Por meio da sociologia das ausências, estas experiências são resgatadas e divulgadas para se tornarem possíveis respostas ou para se constituírem em outros sentidos para a transformação social ou, ainda, propor novas formas de pensar.

Com base nestas considerações teórico-metodológicas, a trajetória aqui empreendida procura refletir sobre uma experiência no campo social de conhecimentos que, segundo Santos (2004), trata de conflitos e diálogos possíveis entre diferentes formas de conhecimento. A focalização das experiências, intenções e culturas construídas nas/pelas concepções de trabalho pedagógico com vídeos, tanto da MultiRio como de alguns professores, é feita por diversas razões.A mais significativa deve-se ao fato de saber que, apesar do esforço, manifesto especialmente pela gama de recursos colocados na experiência da MultiRio, os vídeos e programas produzidos ou pós-produzidos pela Empresa não são tão utilizados como era de se esperar.

Portanto, tomando os indícios resgatados na memória (documentos, estudos, observações) de seis anos de trabalho na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME), como integrante da equipe da Divisão de Mídia-Educação, o objetivo deste exercício é o de buscar revelar sentidos emancipatórios existentes, mas invisíveis ou ignorados em meio aos processos regulatórios, e compreender os saberes, as idéias que se impregnam nas práticas cotidianas desenvolvidas pelos sujeitos sociais, para além daquilo que esses mesmos sujeitos têm sob controle racional (Oliveira, 2003).

     
     

1. Materializando as ausências: contando a história vista de baixo

     
     

Deixei-me guiar pelo acesso e pela curiosidade, e não por uma estratégia consciente. Mas aquilo que no momento pareciam-me desvios (certamente apaixonantes) hoje não me parecem mais (Ginzburg, 1989).

Entre os desafios de qualquer sistema de ensino, está o de proporcionar aos docentes condições para que eles possam, em um mundo que passa por profundas transformações científicas, culturais e tecnológicas, cumprir o papel que lhes cabe no processo de formação cultural da sociedade, o que parece colocar, a todo o momento, a necessidade de manter os professores atualizados e de aperfeiçoar as condições de trabalho nas escolas.

Apesar da ausência de consenso sobre o que se deva fazer para garantir essas condições e mesmo sobre a existência ou não de políticas públicas pertinentes para a área de educação nos níveis nacional, estadual e municipal, não se pode negar que nos últimos anos, por iniciativa da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, através de diferentes governos, algumas iniciativas têm sido tomadas para enfrentar o problema da qualidade do ensino e da formação em serviço dos professores.

Entre essas iniciativas está a criação da empresa MultiRio, já citada, que vem produzindo, desde 1993, exclusivamente para a Rede, recursos audiovisuais, programas de informática, material impresso e, sobretudo, programas de televisão. Assim, a Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro conta com uma prática singular no que diz respeito à inserção das novas tecnologias da informação e da comunicação no processo de ensino.

Considerando toda a discussão que se trava hoje no campo da educação e da comunicação sobre as virtudes e os problemas da mídia, em particular da televisão no processo de formação cultural das sociedades, a iniciativa reveste-se de grande importância, já que nesse contexto, trata-se de iniciativa pioneira no Brasil e uma das únicas no mundo. Não se tem registro de que, por determinação de um poder público municipal, tenha sido criada uma empresa deste porte, com condições, por exemplo, de produzir, pós-produzir e veicular programas educativos de TV na televisão aberta e a cabo.

No entanto, junto à proposta de criar uma cultura de utilização de multimeios no processo educativo (MultiRio, 1996), já havia também, nas diversas escolas, práticas e culturas de utilização de multimeios, entre estes a televisão e o vídeo nas atividades pedagógicas, embora fossem práticas que não estavam explicitamente declaradas e vistas como culturas ou experiências pedagogicamente válidas e criativas.

É que, em meio a circunstâncias às vezes caóticas, os professores vão lançando mão de alternativas singulares na tentativa de solucionar problemas que se apresentam a todo o momento. Entre os problemas que afligem os docentes, está a busca de práticas escolares mais interessantes e mais dinâmicas.

Nesta busca, Regina, uma das professoras da Rede Municipal, disse que usava filmes e programas de TV para dinamizar suas aulas e afirmou que era uma estratégia que dava muito certo. Ressaltou, portanto, que é importante escolher bem o programa ou o filme e que um dos critérios para a preferência de escolha que ela não abre mão é a condição do programa ou filme de nos provocar uma reação emocional. Acredita que as manifestações culturais como o cinema e a televisão, quando conseguem sensibilizar, são capazes de afetar o emocional e, por conseguinte, o cognitivo. Seções de programas de TV e de filmes, segundo Regina e alguns professores, pode vir a favorecer novas possibilidades de compreensão da realidade, e desta maneira, geralmente depois de debates, indicar possibilidades de transformações nas ações individuais, mediadas pelo professor.

Estes indícios de que já havia uma cultura de utilização de vídeos entre professores foram encontrados também numa sondagem feita, por meio de um questionário, pela Divisão de Mídia-Educação (DME) da Secretaria Municipal de Educação (SME), sobre a cultura dos professores no uso da televisão e do vídeo em suas práticas pedagógicas. Neste questionário havia uma pergunta que procurava investigar quais eram os vídeos mais utilizados pelos professores e a justificativa para a escolha realizada.

As respostas formuladas pelos professores faziam referência, em todos os questionários, a vídeos e a filmes que não eram produzidos e pós-produzidos pela MultiRio. Geralmente eram filmes, vídeos e programas de televisão que os professores selecionavam, justificando a escolha pelo fato de que eles incitavam a curiosidade das crianças e adolescentes e que de alguma forma estavam presentes nas conversas dos alunos.

Em primeiro momento, sobretudo quando focalizava a pergunta, a equipe ponderou que podia haver algum tipo de resistência ou rejeição à MultiRio manifestada pela preferência aos vídeos diferentes dos produzidos pela Empresa. Mas, certamente, aí havia uma contradição, pois, apesar de usarem outros vídeos, muitos professores, pelo menos todos aqueles que responderam o questionário, defendiam a empresa citada, defesa esta expressa no próprio questionário, apontando a importância da Secretaria em ter uma empresa para disponibilizar material didático multimídia para a Rede.

Então, o que poderia ajudar a compreender a preferência, manifestada por parte dos docentes, por usar em sala de aula vídeos que não eram produzidos pela MultiRio?

Conforme ressaltado anteriormente, talvez a resposta para esta questão tenha relação com culturas invisíveis ou ignoradas que impregnam as práticas dos professores, sendo que nem mesmo estes professores têm consciência que estas experiências e iniciativas existem.

Também em conversa informal com uma diretora e uma professora regente de Sala de Leitura de uma escola municipal, apesar de acharem bons os programas da MultiRio, afirmam que filmes e alguns programas de televisão, como novelas e reality shows, são usados pela escola como forma de mobilizar as crianças a escreverem e lerem mais, além de darem oportunidade, ao comentarem, criticarem e debaterem com os alunos, de fazerem a mediação entre os sentidos produzidos pela televisão e os sentidos engendrados pelos alunos sobre as questões e valores presentes nestes filmes, vídeos e programas de TV.

Em outras palavras, alguns dos professores, apesar de defenderem a MultiRio e afirmarem que os vídeos produzidos pela empresa são bons, os vídeos mais utilizados na prática pedagógica ainda são aqueles filmes, vídeos e programas de TV que extrapolam o que é produzido ou pós-produzido pela MultiRio.

O curioso é que quando alguns professores são indagados sobre quais os gêneros dos vídeos que necessitam para sua prática pedagógica, geralmente respondem que precisam de vídeos educativos e, portanto, afirmam que desejam, contraditoriamente, um gênero de vídeo diferente do que eles próprios usam.

Há muitas hipóteses capazes de justificar esta contradição: falta de tempo para assistir os vídeos da MultiRio; falta de acesso aos mesmos; falta de tempo e material para gravá-los; entre outros. Mas, talvez uma hipótese que possa explicar esta contradição também seja a de não reconhecerem a sua própria prática com o uso de vídeos ou de ignorarem os seus critérios de escolha dos vídeos com que trabalhar, aceitando tacitamente o que seriam regras preestabelecidas, legitimadas por especialistas.Há alguns sinais que parecem indicar uma tradição, um conhecimento-regulação (Santos, 2001), uma regra tacitamente estabelecida de que para se usar bem o vídeo em sala de aula, este deve ser educativo, o que também costuma significar didaticamente higienizado e até mesmo contaminado por inquietante monotonia, considerando o estilo mais comum de transposição didática (Barreto, 2002b). Provavelmente, o conhecimento-regulação acaba por incitar alunos, pais e outras pessoas a achar que, se o professor exibiu um filme ou vídeo que não é do «gênero educativo», não deu aula ou, simplesmente, enrolou.

Por outro lado, também é digno de nota o fato de que os professores, voltando àquele questionário, ao serem indagados sobre o melhor gênero que deveria ser utilizado na escola, fizeram escolha, também unânime, pelo gênero educativo, deixando de assinalar outras alternativas colocadas na pergunta fechada (documentário, filme, programa de televisão, telejornal, novela, desenho animado, entre outros). Estava configurada a contradição, pois apesar de afirmarem que os vídeos educativos eram os recomendados para o uso em sala de aula, os mais usados geralmente eram os documentários, os desenhos animados, as novelas, os filmes, etc.

Esta contradição também pode ser observada no número e nos tipos de vídeo mais solicitados à biblioteca do Nível Central da Secretaria, ligada à DME. Havia muitos pedidos de empréstimo de vídeos que não compunham o acervo de vídeos educativos produzidos ou pós-produzidos pela MultiRio. Muitos vídeos eram desenhos animados produzidos por uma empresa chamada Crianças Criativas e curtas-metragem como o de Jorge Furtado, o Ilha das Flores, filmes de ficção sobre professor, entre outros.

Uma outra pista presente nesta contradição são as atividades realizadas durante os grupos de trabalho ou ao longo dos cursos sobre o trabalho pedagógico com vídeos fornecidos pela DME aos professores da Rede. Geralmente os vídeos escolhidos como ponto de partida não constavam do acervo disponibilizado pela MultiRio.

Uma outra situação que ilustra bem este impasse é o caso do curta-metragem Os outros de Fernando Mozart, cineasta integrado ao quadro de funcionários da referida empresa justamente quando da produção de um kit com o objetivo de divulgar o acervo produzido pela empresa para as escolas da Rede, considerando o já reconhecido pouco uso dos seus produtos, apesar de todos os dias veiculados pela Bandeirantes (canal 7), por um dos canais da Net e pela TV Educativa (TVE). O curta-metragem Os outros era um dos vídeos que compunham o kit e tinha-se, à época, a informação de que este era um vídeo bastante utilizado por professores da Rede, com destaque para os de História. Uma vez enviado à SME para análise, o kit passou a conter apenas os vídeos educativos produzidos ou pós-produzidos pela MultiRio. A SME solicitou a retirada de Os outros, sob a alegação de não ser este um vídeo educativo e por mostrar uma visão parcial da cultura nacional.

Sem dúvida, há muitos aspectos em jogo na situação narrada acima. Merecem estudo específico as relações, especialmente os conflitos de poder, entre a SME e a MultiRio, não objetivadas neste trabalho. De qualquer modo, mesmo sem focalizar estas relações, é possível verificar dois aspectos importantes. O primeiro corresponde ao fato de que era atribuída ao material a ser veiculado, em si, a possibilidade educativa, movimento caracterizado por Martín-Barbero (1997) como a valorização dos meios, em detrimento das mediações. O segundo diz respeito aos indícios de que já havia uma cultura (ou muitas) de uso de vídeo entre os professores e que ela incluía vídeos não identificados ao mesmo gênero (educativo) dos produzidos e pós-produzidos para a Rede.

O dilema poderia ser sintetizado em: o que fazer? Criar uma cultura de utilização de multimeios no processo educativo (MultiRio, 1996) ou partir da cultura já instituída pelos professores nas escolas?

Este trabalho, mesmo não pretendendo dar conta das duas opções acima, aponta no sentido da segunda hipótese.
     
      2. Expandindo as emergências: a ampliação das experiências sociais possíveis      
     

Este mundo é inconcluso. Além há continuação. Invisível como a música. Evidente como o som (Emily Dickinson).

Recuperando o objetivo deste estudo, no exercício de uma sociologia das ausências e das emergências, ficam, para além das aparências imediatas, as alternativas produzidas a partir de baixo e de vislumbrar quais são as suas possibilidades e limites.

O exercício de ler os indícios e pistas, muitas vezes insignificantes, mas reveladores, presentes nas falas e ações dos professores, indicou que, longe de ser ausência de saber, o modo peculiar e singular com que os professores lidam com os vídeos revela outros saberes e outra(s) lógica(s). O que parece ação isolada e ignorante pode ser compreendido como pistas para uma prática e um saber criativo e emancipatório.

Com efeito, este trabalho é apenas um dos exercícios necessários para se perceber, nas tensões existentes, as idéias ocultas sob uma aparência de consenso, estabilidade e uniformidade, já que até mesmo aqueles professores que usam vídeos diversos, respondem teoricamente que é indicado que, em sala de aula, se usem vídeos educativos. Assim, em outras palavras o que se propôs aqui foi contar a «história vista de baixo», uma vez que procurou ouvir vozes silenciadas por um discurso hegemônico e reconstituir a história de alguns dentre tantos vencidos (Santos, 2004; Ginzburg, 1989, Orlandi, 1989).

Os fatos, as situações e as circunstâncias descritos neste texto levam a, pelo menos, três conclusões. A primeira delas está relacionada ao fato de que a experiência e o conhecimento do professor são muito mais amplos e variados do que aquele conhecimento tradicional e hegemônico veiculado oficialmente. Os professores, diferentemente do que muitos pensam, sabem selecionar vídeos e programas de qualidade em televisão (Machado, 1999) e trabalham com eles de forma autônoma, criativa e com potencial contra-hegemônico, não restrita a propostas de substituição tecnológica, como o vídeo para dar aula no lugar do professor. Assim, a partir de vídeos escolhidos como, por exemplo, Ilha das Flores, A alma do negócio, Os outros, entre tantos outros, motivam discussões, elaborações e mediações críticas, em abordagens que fazem sentido para os alunos.

A segunda conclusão remete à riqueza cultural está sendo desperdiçada. E é deste desperdício que se nutrem as idéias que proclamam que não haver alternativa para a escola e que esta estaria incondicionalmente em favor somente da reprodução social, no presente e no futuro.

A terceira e última, indissociável das anteriores, diz respeito à necessidade de combater o desperdício da experiência, de tornar mais visíveis as iniciativas alternativas e lhes dar credibilidade. Mas para que isto ocorra, é patente, também, que pouco serve o recurso à ciência tal como a conhecemos, que está presente na voz de autoridade tanto do cientista (que sugere em suas teses que para se fazer um trabalho pedagógico sério com vídeos deve-se usar vídeos que tenham objetivos educacionais), como na do especialista (que produz e que indica somente os vídeos educativos para se trabalhar em sala de aula). Afinal, essa ciência e esse discurso hegemônico foram responsáveis por ocultar ou desabonar muitas das alternativas criativas que permanecem obliteradas.

Como afirma Alves (2004): é preciso criar e desenvolver o espaçotempo do saber cotidiano para se entender a introdução das novas tecnologias e dos novos conhecimentos no cotidiano de formação dos profissionais que atuam em múltiplos contextos. É preciso compreender o saber que surge do uso, com suas formas e inventividades próprias.

Este movimento, correspondente ao que Santos (2004) denomina ver o subalterno tanto dentro como fora da relação de subalternidade, pode vir a permitir criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis e, quem sabe, a inteligibilidade entre o senso comum e a ciência, auxiliando na constituição de condições para que insurja um senso comum esclarecido ou um conhecimento prudente para uma vida decente.

Com efeito, este movimento de criar inteligibilidade entre as duas experiências e conhecimentos (dos professores e dos profissionais da MultiRio) sobre vídeo talvez possa tornar mais aparente o que une e o que separa os diferentes movimentos e as diferentes práticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulação ou agregação entre eles (Santos, 2004). E uma das possibilidades inscritas nesta inteligibilidade é a indicação de produção de vídeos e de programas de televisão de qualidade, livres do didatismo ou da aula pronta pelo vídeo, pois estes vídeos educativos prontos, em última instância, podem menosprezar e desqualificar o professor e sua autonomia de trabalho.

Portanto, é necessário que se reflita sobre as condições e possibilidades reais já existentes, sob pena de continuar dando menor importância, em nossos estudos, às experiências de nossos professores? Até quando ignoraremos o saber que muitos professores possuem? Até quando generalizaremos propalando somente a precária situação em que a escola e o professor se encontram? Até quando vamos continuar defendendo a distância hierarquicamente organizada entre aquilo que se produz como conhecimento científico e o que se pratica de fato nas nossas escolas? Até quando continuaremos reforçando o poder e a circularidade teórica da ciência e dos sentidos hegemônicos e, assim, ajudando a ocultar a produção de alternativas, já existentes, de solução dos inúmeros problemas que o nosso sistema educacional enfrenta?

Observamos, em síntese, a necessidade de estudos que considerem estas questões com vistas a avaliar melhor as alternativas que hoje são possíveis e disponíveis, aumentando o campo das experiências credíveis e expandindo boas expectativas, não só para um futuro melhor, mas para um presente diferente, pois segundo Santos (2004), o novo inconformismo é o que resulta da verificação de que hoje e não amanhã seria possível viver num mundo muito melhor.

     
     
Referencias
     
     

ALVES, N. (1992): Formação de professores: pensar e fazer. São Paulo, Cortez.
GUIMARÃES, G. (2003): Mídia e formação cultural: a televisão e suas práticas de linguagem. Brasília, Revista de Educaçã–AEC.ç
MACHADO, A. (1999): «Uma nova maneira de ver televisão», in FIGUEREDO, V.: Mídia e Educação. Rio de Janeiro, Gryphus.
MARTIN-BARBERO, J. (1997): Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.
MULTIRIO (1996): Relatório de gestão 1993-1996. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro-Secretaria Municipal de Educação.
MORIN, E. (2001): Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
OLIVEIRA, I. (2003): Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro, DP&A.
ORLANDI, E. (1987): A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas, Pontes.
SANTOS, B. (2004): Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo, Cortez.

     
     
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Santos (2004) também se refere às confrontações no âmbito da ciência e as intitula de «guerras da ciência». Faz, freqüentemente, referência ao embate entre ciência moderna e pós-moderna e entre ciências humanas e as ciências exatas (1989, 2001, 2003, 2004).

Expressão cunhada pela professora Inês Barbosa de Oliveira em sala de aula, em 17 de junho de 2004.

O curta-metragem é o relatório de um pesquisador marciano explicando ao chefe o que é a «Coisinha do Pai», música de Beth Carvalho, cantada em Marte por um robô da NASA (sinopse retirada do site www.portacurtas.com.br).

     
     
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Glaucia Guimarães, Nilda Alves y Raquel Goulart son profesoras de la Universidad de Rio de Janeiro (Brasil) (gl.guimaraes@uol.com.br).